sobre ‘o TEMPO não Recuperado’
dados técnicos:
formatos existentes: DVD-ROM e videoinstalação para 5 projetores de vídeo
duração linear aproximada: 60 minutos
criação: Lucas Bambozzi
desenvolvimento técnico: Fábio Massui Seiji
sinopse:
O Tempo Não Recuperado é o resultado de uma busca de imagens videográficas em um arquivo pessoal transpostas para formatos de narrativa não-linear e interativa. Na forma de videoinstalação e em formato DVD, o trabalho reprocessa vestígios dos propósitos originais que motivaram a captação dessas imagens de modo a permitir novos sentidos e reconfigurações atualizadas às imagens existentes.
Relato de percurso
Gravo imagens desde o final dos anos 80. Mesmo quando não possuía uma câmera, sempre buscava ter alguma por perto o que me levou a registrar de forma quase obsessiva uma grande variedade de situações vividas. De início gravava em VHS e U-Matic, com equipamento emprestado por empresas produtoras, universidades e amigos. Depois veio o super8, 16mm, video8 e mais tarde o Hi-8, formato com o qual constituí uma parte considerável de um acervo que me é tão valioso como frágil e inacessível. Há cerca de 8 anos não me separo de uma câmera digital MiniDV e as pequenas fitas vão acumulando como nunca todo tipo de material. Ao longo desses quase quinze anos, fui colecionando imagens de eventos, acontecimentos, devaneios, situações íntimas, momentos peculiares, especiais ou não — e a câmera foi se tornando uma espécie de cúmplice de muitas situações vividas. Esse fenômeno talvez não se mostre atualmente muito relevante tendo em vista a recente portabilidade das câmeras e as facilidades de publicação instantânea via blogs e videologs. Muitos vem de fato experimentando uma espécie de existência paralela, cuja identidade é constantemente construída através de um discurso de si, em imagens e textos que reinventam a fotonovela de cada um. Assim, nunca o individuo comum esteve tão perto de se tornar um fotografo, um videomaker, um emissor. A câmera acoplada ao celular por exemplo espalha esse suposto potencial para espectros pouco imaginados antes. Para os mais entiusiasmados com as tecnologias mobile, antes carregar uma câmera era uma situação especial, de excessão, hoje não carrega-la é a excessão. Não são mais apenas os turistas (uma existência temporária, em estado de excessão) que se ocupam em registrar sua passagem por monumentos, construções, parques, praças, museus, esculturas. Fotografamos para lembrarmos que existimos, dizia Wim Wenders em Olhos Não se Compram (Peter Buchka, 1987). Os anti-heróis de Les Carabiniers (1963), de Jean Luc Godard voltam da guerra com seus tesouros: fotografias do mundo, uma porção de imagens heroicamente exibidas às suas amantes como conquistas. Hoje talvez essas distorções ou licenças poéticas estejam imersas na instantaneidade da vida corriqueira, mas com alguns outros ingredientes: hoje fotografamos, editamos e sobretudo nos esforçamos em compartilhar (publicar) dados e imagens privadas, buscando assinar nossa passagem pelo mundo público.
Mas o que acontece quando essas imagens apenas se acumulam? – quando falha o fluxo do desfile imagético. Imagens se perdem aos montes, sem exercerem nenhum potencial de eloquência e visibilidade. Para onde vão as emoções supostamente impressas em fitas esquecidas e filmes não revelados?
Penso então em imagens que supostamente guardam processos e experiências vitais e muito reais, ou que foram mesmo viabilizadoras de situações às quais não teria tido acesso se não estivesse munido de uma câmera, esse poderoso elemento de mediação entre realidades distintas. Penso que por uma série de motivos (desde impecilhos técnicos à objetividade que nos é imposta pelas práticas no âmbito do circuito cultural) torna-se às vezes muito difícil rever todo esse conjunto de tentativas de apreensão de situações vivenciadas, de experimentações estéticas não concluídas. Algumas dessas imagens se tornam gozo interrompido, pois não se tornaram uma obra, não obtiveram o privilégio de encontrar um espectador: não se confirmaram como registro, documento ou poesia. Por não terem ecoado na subjetividade alheia (às vezes sequer em minha própria subjetividade), a essas imagens não lhes foram atribuídas um sentido, elas não tiveram a oportunidade de sair de seu confinamento meramente técnico. Elas não endossarão a existência de ninguém. Se nada for feito (e serei o único responsável por isso), elas morrerão junto com as mídias que as viabilizaram.
As falas falhas da memória
Parto de uma convicção um tanto cética de que a memória só existe quando é requisitada — ou disparada por elementos revisitados, como sons, espaço físicos onde se esteve, cheiros, etc. Esses elementos, tais como sugeridos pelo universo de Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust, poderiam evocar um sentido para essas imagens adormecidas.
Motivado pela experiência supostamente proporcionada pela ‘revisita’ a essas imagens, e não por saudosismo ou afirmações egocêntricas, procurei estabelecer conexões que se perderam. Buscaria o propósito de determinadas imagens, refazendo percursos e processos. Daria finalidade a esboços mal traçados, tiraria o mofo que impede o fluxo da memória.
Tal oportunidade seria re-encontrada num momento em que olhar para trás já não é mais permitido. Poderia dar um sentido pessoal ao título do capítulo derradeiro do romance de Proust: ‘O tempo recuperado’, seria uma experiência possível?
Hoje, ler Em Busca do Tempo Perdido equivale a um regozijo não permitido pelas tecnologias da velocidade. Ao mesmo tempo detecta-se em vários cantos do mundo uma redescoberta das qualidades e da experiência proporcionada pelo romance. Especialmente a partir da virada do milênio, o livro gerou debates e mostras como a do Centre Georges Pompidou em 2000, em Paris, que transformou a obra numa espécie de santuário onde cerca de 50 escritores franceses leram a íntegra de Em Busca do Tempo Perdido em voz alta, em turno de quarto horas. Seus detalhes o configuraram como mais um hit na Internet, aproximando erudição e cultura popular.
Tomando esse interesse generalizado como sugestão para uma espécie de ‘processo literário de desintoxicação’[1], a obra mais conhecida de Proust serviu a este projeto como modelo de pensamento, em um processo envolvendo disciplina e paciência a partir de duas experiências simultâneas: a releitura do livro e a imersão nas imagens guardadas.
O último capítulo do livro, O Tempo Recuperado, se lançou desde o início como ponto de conflito no roteiro esboçado, como ícone do embate entre o planejado e o que poderia de fato encontrar nesse processo. Neste capítulo, o autor compõe um retrato da corrupção trágica de todas as coisas. As pessoas que o narrador julgara amar voltaram a ser simplesmente nomes, como outrora e os objetos que buscara tinham-se desfeito. Constata-se que ‘a vida não passa de tempo já desaparecido’.[2]
A experiência proposta poderia resultar numa constatação diferente. Porém, na maioria das vezes, o percurso de revisitação de imagens não disparou possibilidades emotivas ligadas à recordação das situações vividas. Em vários momentos sequer pude detectar minha presença emocional na captura de determinadas imagens, por mais que houvessem indícios objetivos de que estava fisicamente presente nas situações registradas. Já a perspectiva de associação dessas imagens com outras, derivadas de contextos temporalmente distintos, convidava a um processo bastante sugestivo de reinvenção do sentido das imagens. Assim, evocando mais a criação de uma teia audiovisual que acontece no presente, sujeita a associações de planos, seqüências e idéias em um processo subjetivo de edição por parte do espectador, fui montando pequenas coleções e agrupamentos (que se evidenciavam às vezes pela temática, às vezes pela visualidade plástica, às vezes pelo movimento ou pela repetição de padrões), recriando sensações e articulando novos sentidos, localizados mais no tempo presente do que no passado.
Constatando que o tempo passado ‘não se recupera’, mas pode ser recriado a partir de experiências na atualidade, tomei emprestado o título do último capítulo para o trabalho finalizado, de forma re-contextualizada: um avesso de metáfora sobre o resgate das emoções e sentimentos supostamente anexados às imagens produzidas.
Documentário não-linear: o algoritmo e o acaso
Diferentemente de uma narrativa seqüencial e linear, as coleções de seqüências visuais demandavam uma estrutura específica, não apenas de montagem mas também na forma de acesso. Apesar da intenção de trabalhar com um formato não-linear ter sido definida a priori, em consonância com o conceito da proposta (imagens de uma suposta memória-arquivo), foi o material encontrado que definiu a estrutura a ser adotada.
A escolha de um formato recairia naturalmente nos chamados database movies, ou filmes de banco de dados, que utilizam algoritmos como forma de organizar a seqüência de clips pré-editados disponíveis em uma banco de imagens. Instalações notadamente ‘cinemáticas’ como Win, Place or Show (1999) de Stan Douglas ou Soft Cinema (2000) de Lev Manovich foram alguns dos trabalhos notórios que ajudaram a difundir esse formato, utilizando lógicas bastante complexas de programação e gerenciamento de mídias — uma vez que ainda não haviam softwares mais simples e dedicados à produção desse tipo de trabalho.
Procurando por ferramentas baratas e de fácil utilização encontrei o Korsakow System, software gratuito e multiplataforma desenvolvido pelo documentarista Florian Thalhofer junto à Universidade de Artes de Berlim, que se mostrou como a escolha apropriada para o desenvolvimento de O Tempo Não Recuperado. Florian desenvolveu o software quando ainda era estudante de narrativas interativas com o objetivo de ‘estruturar’ uma série de depoimentos que colheu em várias partes do mundo sobre o consumo de bebidas alcoólicas. O nome do software surgiu deste trabalho, batizado de Korsakow Syndrome, que se refere a um termo médico que descreve um dano cerebral ligado ao abuso de álcool que afeta a memória. Os pacientes desta síndrome geralmente compensam essa falha da memória desenvolvendo um talento peculiar de contar histórias. Assunto polêmico e facilmente gerador de posições ‘a favor ou contra’, (‘Todos têm uma forte opinião formada ou algo a dizer sobre o assunto’, diz Florian[3]) um documentário alinhavando tais entrevistas linearmente implicaria em questões discursivas, moralistas ou inflamadas sobre o alcoolismo. A construção linear leva quase que necessariamente à elaboração de um discurso ideológico, que se explicita através do encadeamento das seqüências. Florian acabou por evitar tais implicações causais ao realizar seu documentário utilizando o formato de banco de imagens.
No caso de O Tempo Não Recuperado, dada a natureza subjetiva e íntima das imagens (fragmentos de uma memória fugidia e dispersa) também não se fazia necessário incorrer num discurso: não há conclusões, não há um percurso concluído, não há a ‘moral da história’. Tratava-se apenas de tornar disponíveis os conteúdos de forma sugestiva, de proporcionar uma estrutura que permitisse o acaso, o acidente e a intuição, que valorizasse o processo criativo, inclusive o do expectador.
Tais intenções se tornaram viáveis através do Korsakow de forma extremamente simples. Ali como em outros softwares de organização de banco de dados, basta atribuir a toda sequência (quaisquer clips com extensão .mov) uma série de palavras-chave, que funcionarão como os reais atratores entre os planos. Lev Manovich ressalta como característica fundamental nos filmes de banco de dados com relação os formatos lineares tradicionais o fato de que no primeiro o autor não define a ordem final de execução da obra (2002a). O conceito de metadata (algo como dados sobre dados) é um dos pontos centrais desse modelo. Neste caso, metadata são as palavras-chave associadas às imagens dentro de um banco de mídias. Manovich descreve metadata como ‘aquilo que permite aos computadores “verem” e acessarem dados, movendo-os de lugar para lugar, comprimindo e expandindo, conectando dados com outros dados (Manovich, 2002b). A criação de uma lógica interna de edição (o algorítmo) que define como as seqüências podem ser reorganizadas é outro elemento-chave deste formato. Ou seja, não seria um erro afirmar que a criação do algoritmo vai acabar por influenciar toda a fruição e a forma do trabalho acontecer, estando novamente em questão a intenção do autor na programação prévia das seqüências em função da lógica interna utilizada. No entanto, vale dizer que no caso de alguns softwares como o Korsakow, toda a estruturação da lógica interna das seqüências pode ser feita sem a utilização de ferramentas típicas de programação, ou seja, a grosso modo pode-se dizer que ali o algoritmo pode ser definido por ‘vias subjetivas’.
E em formatos mais subjetivos quase sempre se evidencia uma pergunta: por quê essas narrativas tão pessoais interessariam a alguém? De que modo elas podem ser disponibilizadas? Buscando formas simples de enunciação, tratava-se então de estabelecer uma estrutura convidativa, que não afastasse o usuário/expectador do acesso ao conteúdo. Para tanto esta estrutura haveria de ser não-hermética e não-impositiva, não apenas em termos de construção causal, mas também em termos de interface gráfica. Ou seja: que tipo de interface não se oporia à fruição de uma narrativa tão subjetiva?
Contrariando teimosamente teorias em torno da lógica de funcionamento das novas mídias, que apontam para ao vínculo indissociável entre conteúdo e interface, tratando a interface como mensagem (E. Couchot 2003; G. Beiguelman 2003; L. Manovich 2000), decidi que meu interlocutor não seria um típico usuário/expectador de informática e provavelmente não seria também um artista de novas mídias. Seria alguém que se interessaria em experimentar formas simples de acesso a seqüências visuais, talvez porque as próprias seqüências visuais o interessassem. Assim, não utilizaria recursos de mapeamento ou visualização de dados, nada de manipulações de objetos de mídia, nenhuma ferramenta de busca, filtro, zoom, vistas múltiplas, sintetização ou outros padrões adotados pelas interfaces de aplicativos, por mais que esses recursos possam estar introjetados na cultura do cidadão informatizado. Ou seja, o modo default do Korsakow System já era suficiente: três opções de novas seqüências ao fim de cada seqüência vista. Isso bastaria para levar o usuário/expectador a um labirinto bastante complexo de situações subjetivas, convidando-o a compor possíveis retratos (situações, paisagens, espaços percorridos, existências diversas, meu pai, eu mesmo) de forma aberta, não concluída, sugestiva.
Para a versão de O Tempo Não Recuperado na forma de instalação o dispositivo de ‘interação’ adotado foi ainda mais simples. O usuário/expectador simplesmente se dirigiria à projeção que mais lhe atraísse, independentemente do canal de áudio em utilização (através de fones de ouvido) experimentando e combinando formas distintas de fruição do trabalho através do deslocamento físico de seu corpo ou de seu olhar.
A busca das interações, as tentativas de apreender detalhes da memória, a oportunidade de uma maior consciência da trajetória percorrida, são detalhes que motivaram e moveram esse projeto desde o início. Contudo, correm o risco de não serem mais que meras experiências, que não fazem maior sentido se não transformarem minimamente nossa forma de ser e enxergar as coisas. Nesse percurso, como em praticamente todos ou outros aos quais me lanço, permiti que isso acontecesse.
A intenção de registro obsessivo através da câmera como objeto onipresente e voluntário, haveria de abrir lacunas na memória, deveria suprir com vida os momentos banais, onde o tempo se inscreveu, às vezes de forma indescritível, e remotamente, talvez transformadora. A invenção desta possível literatura da existência não foi substituída totalmente pelas máquinas de imagens. Tudo depende das entrelinhas e vazios entre uma cena e outra, um play e um stop, a disponibilidade em ver: a paisagem ainda pode ir até onde o olho alcança, seja no micro ou no macro, dentro ou fora de si.
Lucas Bambozzi 2005/2006
[1] Frase da escritora Carla Power, em artigo na Newsweek, publicada em fevereiro de 2000.
[2] Palavras de Fernando Py no prefácio de Em Busca do Tempo Perdido
[3] Declaração de Florian em entrevista ao autor em 05/11/2005
Bibliografia citada:
Beiguelman, G. (2003) sobre Egoscópo (http://www.desvirtual.com/egoscopio/english/about_more.htm)
Acessado em 10/04/2006
Buchka, P. (1987) Olhos não se compram – Wim Wenders e seus filmes, São Paulo: Companhia das Letras
Couchot, E. (2003) A tecnologia na arte:?da fotografia à realidade virtual??tr. Sandra Rey?Porto Alegre: Editora da UFRGS
Manovich, L. (2002a) Soft Cinema: Concepts
(http://www.manovich.net/cinema_future/sc_concepts_full.html)
Accessado em 19/02/2003
Manovich, L. (2002b) ‘Metadating’ the Image
(http://www.manovich.net/DOCS/metadata.doc) Acessado em 19/02/2003
Proust, M. (2001) Em Busca do Tempo Perdido tr. Fernando Py Rio de Janeiro: Ediouro
O Tempo Não Recuperado, instalação e DVD-ROM foram realizados através da Bolsa Estímulo do 4º Prêmio Sergio Motta, 2003
O software gratuito korsakow-system pode ser baixado no site: http://www.korsakow.net Maiores informações em: http://www.korsakow.org>.
08/06/2007 – Lucas Bambozzi
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