O projeto Kinotrem aconteceu junto ao Arte/Cidade em 1997 como um conjunto de módulos que tinham como objetivo promover a comunicação entre os vários espaços da terceira edição do evento idealizado por Nelson Brissac.
Planejado ao longo de dois anos, teve como ponto de partida a experiência do kinotrem desenvolvido na União Soviética entre os anos de 1931 e 1933. Mas um projeto evolvendo tecnologias atuais, teria que incorporar linguagens e tecnologias de vídeo em tempo real – vigentes em 1997, num mundo ainda sem banda larga.
Assim foi criado um circuito conectando espaços para além do Arte/Cidade, envolvendo ações diversas: um link duplo de transmissão simultânea, carrinhos oferecendo videoarte ‘a la carte’, câmeras portáteis VHS disponíveis para os visitantes, registros de anônimos, parcerias com os artistas participantes, projeções no espaço expositivo e intervenções nos bairros vizinhos. Tratamos de dar conta de vários elementos: o universo temáticos e estético presente do cinema russo dos anos 20 e 30; a transposição da realidade para as telas que inaugurava um cinema documental com base numa linguagem sensorial; a exploração dos tênues limites entre atividades artísticas, de comunicação e de embate social. Esses elementos nos permitiram revisitar um pouco do período industrial que floresceu em São Paulo em torno do fluxo ferroviário, fazendo convergir o contexto do início do século com a condição da região habitada pelo Arte/Cidade, envolvendo os anacronismos e incômodos presentes.
Cerca de dois anos de discussões intensas foram lançados às ruas. A equipe traçou travellings por avenidas, muros, cercas, pontes, vias engarrafadas. Registrou construções fabrís, casarões nobres e antigos transformados em hotéis e percorreu barracas de ambulantes sem fim. Visitou igrejas, sinagogas, galpões desativados e de escolas de samba. A realidade social imaginada a partir de mapas e plantas aéreas se confirmou em botecos escuros, comércio informal, trânsito caótico, atividades lícitas e nem tanto. Enfim, havia a perspectiva de se contar a história de São Paulo por uma ‘psicogeografia’ de seus hiatos. Em todos esses lugares registrou-se vida intensa e inquieta. Curiosa, díspar e dura, porém disposta a falar e confirmar verdades que o cinema mudo do Kinotrem russo de Alexsander Medvedkin, centrado na realidade social, sempre almejou.
Experimentado o registro mais informativo e documental, constatou-se logo a necessidade de um circuito que se distanciasse de qualquer assepsia, algo raro na região. A adoção de um sistema de transmissão ao vivo incorporaria acasos e animosidades entre habitantes da região Luz-Água Branca- Barra Funda e os curiosos visitantes do Arte/Cidade. Tecnologia presente na vida cotidiana da TV mas muito pouco subvertida em termos de controle da informação, o link ao vivo proporcionou um pouco de tudo – exatamente como nos chats promovidos na virtualidade da Internet. Produziu-se um curioso espelho, um periscópio eletrônico para além dos muros da ‘estação Matarazzo’, com visibilidade descentralizada para a vida real de grafiteiros, legiões suburbanas, trabalhadores, religiosos, desempregados, cantores, casais, drag-queens, pais de família, comunicadores e artistas.
A partir da contraposição desse universo com imagens previamente elaboradas e de caráter informativo, espectadores sem preconceitos com relação à confluência entre imagens e o mundo caótico que nos rodeia, puderam se impregnar um pouco das intenções do Kinotrem paulista. Em sua complexa tarefa de diminuir distâncias e promover integrações, os conceitos se complementaram a partir das atividades dos demais módulos e projetos paralelos. Juntos, constatamos o quanto a atualidade da imagem da cidade não é possível sem a “desordem” causada pelo elemento humano que a habita de fato.
lucas bambozzi
videodocumentação:
descrição:
Kinotrem (1996-1997)
Lucas Bambozzi e Eliane Caffé
Memória do circuito bidirecional de emissão e recepção de vídeo em tempo real entre os bairros Bom Retiro, Água Branca, Freguesia do Ó, Barra Funda, Luz e Lapa.
Material disponível: cerca de 180 fitas VHS com imagens das transmissões ao vivo ao longo de 14 dias entre a unidade móvel (Kinokombi) e o circuito de exibição controlado por VJ, formado por monitores e projeções nas Indústrias Matarazzo durante o Arte/Cidade III.
ficha técnica:
Concepção original do projeto
Lucas Bambozzi, Eliane Caffé e Renato Barbieri
Coordenação geral
Lucas Bambozzi
Direção
Eliane Caffé
Fabiano Gullane
Lucas Bambozzi
Direção dos vídeos
Fabiano Gullane
Coordenação de produção
Caio Gullane
Direção de Arte
Lucia Koch
Corte e edição em tempo real
Jefferson De
Intervenções e mediações
Lucila Meirelles
Pedro Guimarães
Produção
André Montenegro
Rui Pires
Pesquisa Histórica
Patricia Trevelyan
João Cláudio de Sena
Pesquisa e Assistência de Direção
Patricia Trevelyan
Eduardo Abad
Realização
Diphusa Mídia Ditial e Arte
SESC
Arte/Cidade
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